Nem o sangue a gente dá sozinha…

Quando doei sangue pela primeira vez, há cerca de quinze anos, o fiz pela menos nobre das razões: queria folgar ao serviço.

Na saída, como se por punição, quase desmaiei. Foi uma comoção, minha pressão ficou baixíssima e me mantiveram lá pelo que pareceu uma eternidade até se assegurarem de que eu não iria desmaiar lá fora.

Eu estava me recuperando de uma das fases em que mais bebi na minha vida. Por cerca de cinco anos, eu havia bebido até passar mal quase todos os dias da semana (e boa parte dos finais de semana), muitas vezes até vomitar mesmo. Para mim, as pessoas ao meu redor, me cuidando naquele momento, me lembravam muito as pessoas sóbrias cuidando de mim enquanto eu estava “dando trabalho” bêbada. E eu dava bastante trabalho.

Saí com vergonha, mas com a doação feita e os meus dias de abono.

Na segunda vez, antes de ir me alimentei melhor, dormi melhor… mas foi pior. Comecei a passar mal já no meio da doação. Nova vergonha (sentimento a que estou habituada, reconheço sem muito orgulho) e finalmente a compreensão de que aquilo não era para mim.

Algum tempo depois (acho que foram uns três anos), uma das minhas irmãs teve uma complicação grave em uma cirurgia. É desesperador ver alguém que você ama no hospital sem poder fazer nada além de esperar – seja no sentido de aguardar, seja no sentido de ter esperança. Então, quando saiu a notícia de que precisávamos de doação para repor o que ela havia utilizado no banco de sangue, marchei para o hemocentro (outro) decidida a ser útil de alguma forma.

Mas não fui. Me lembro da enfermeira mexendo a agulha no meu braço, tentando reestabelecer o fluxo que o meu corpo – olha que esperto que ele é! – interrompeu por conta própria, enquanto eu suava frio, com ânsia de vômito. Parece que ele entra numas de “o que foi que essa louca aprontou agora? Melhor derrubar a pressão para conter essa hemorragia”. Sei lá.

Saí tão desolada que poderia ter sentado e chorado na calçada. Nem mesmo o pouco que eu havia dado poderia ser utilizado, porque era menos que o mínimo necessário para a doação. Ou seja, eu não apenas não havia ajudado, eu havia atrapalhado – gastando tempo e recursos para nada.

Daí, nesta semana, recebi a notícia de um conhecido querido que está internado, com pedido de doação de sangue.

Algo em mim me disse que poderia ser diferente. Eu agora tinha à minha disposição um arsenal de técnicas, mentalizações, visualizações. Eu consigo hoje manter a cabeça em situações que antes me tirariam completamente do eixo.

Com a agulha no braço, mentalizei uma fonte abundante. Agradeci ao meu corpo pelo seu cuidado comigo e avisei a ele que, naquele momento, isso não seria necessário, porque eu só estava dando o que não me faria falta. Que o que ia embora logo seria reposto e que tudo ficaria bem de qualquer forma. A fonte era abundante. A vida era abundante…

Senti minha pressão caindo rapidamente.

Não! Não, porra! A fonte é abundante caralho! Volta, volta, nãããããoooooooooo…

Reconheci a derrota quando começou a bater a ânsia de vômito. Já bastava desmaiar, só me faltava agora vomitar e nem conseguir limpar a minha própria sujeira. Avisei, em uma voz que já parecia distante, que minha pressão estava caindo.

Assim que consegui falar, pedi desculpas à enfermeira que estava ao meu lado, deitando a minha cadeira, colocando o bandeide no meu braço.

Não era nada demais, segundo ela. As pessoas desmaiam o tempo todo, algumas até vomitam. Mesmo as que doam sempre, nunca se sabe. Faz parte.

Perguntei se havia o bastante para aproveitar a minha doação. Ela disse que ainda não. Ainda? Me interessei pela palavra pequeninha ali no meio da frase dela.

Comecei a melhorar aos poucos. A enfermeira veio até mim e me perguntou se eu queria tentar de novo. Para completar os 280mL mínimos para fazer a doação, aproveitar o que eu tinha dado até ali.

Fiquei chocada. Posso?

Pode. A gente deixa você deitada para ver se assim você consegue.

E se eu passar mal de novo?

A gente interrompe de novo.

Assim, como se não fosse nada demais. Será que não era?

Senti uma coisa estranha… boa. Um alívio. Acolhimento, aceitação. Como um desamarrar no peito.

Concordei. A enfermeira e mais uma colega ficaram perto, monitorando. Quando nos aproximamos dos 280mL, elas iam avisando e comemorando a cada 10, hahaha. Daí, chegando na marca tão almejada, estava me sentindo tão bem que quis continuar. Elas interromperam em 320mL, dizendo que já “está bom de rebeldia por hoje”.

Enquanto eu aguardava minha recuperação (minha pressão demorou ainda um tanto para voltar ao normal), ela me disse para, da próxima vez, eu avisar para já começar a doação deitada.

É mesmo? Posso vir de novo?

Claro!

Mesmo dando esse tanto de trabalho?

Esse trabalho faz parte. É a nossa parte do trabalho.

Agradeci – por todo o cuidado, atenção, paciência e acolhimento – e vim embora. Foi uma vitória para mim, e foi uma vitória especial porque não foi só minha. Foi um esforço de equipe. Um trabalho coletivo. Sem o apoio das pessoas que estavam ali, eu teria perdido 100mL de sangue. Por conta do apoio delas, alguém vai receber 320. Alguém por quem, juntas, pudemos fazer mais do que só esperar e esperar.

Saindo dali, sentindo no meu peito meu coração bater mais aberto, entendi que o que mais me mudou ao longo desses dez anos não foram as ferramentas que eu adquiri. Foi aprender a pedir e receber apoio. Aprender a fazer parte de algo que não se resume só a mim. E o quanto isso me torna capaz de verdadeiramente apoiar outras pessoas.

0 Compart.
Compartilhar
Twittar
Compartilhar